Friday, July 29, 2005

O quarto andar com elevador

Isto vai fechar, pois. O quarto andar não resiste à possibilidade de se montar um elevador – daqueles confortáveis, onde até há um espelho para uma pessoa poder verificar de manhã se tem espuma de barbear nas orelhas - neste prédio da Estefânia e por isso vai encerrar a sua actividade cronística.
Sempre achei que não há nada mais piroso do que os finais feitos de agradecimentos vários - normalmente com uma lágrima ao canto do olho. Daí que não tenha hesitado em fazer um final feito de agradecimentos vários. Com uma inundação no bairro por causa do descontrolado jorro lacrimal.
Agora que isto vai ser demolido, agradeço:
1) Ao meu amigo Luís Osório por ter desafiado este reaccionário de serviço (que em mim se aloja) para uma dose diária. E por ter sido a pessoa que mais me incentivou – juntamente com o meu amigo Luís Filipe Borges – a continuar a fazer a caminhada. (Ou seja: a descer e subir as escadas do meu prédio).
2) Ao Paulo Narigão Reis e à Fernanda Mira – a quem, durante meses, enviei estas prosas. (Só eles sabem do meu vício de corrigir vírgulas e termos secundários depois do artigo já ter seguido por email; desculpem-me a irritante obsessão). E também à Ana Kotowicz, por ter acolhido os documentos nestas conturbadas semanas. (A propósito: uma nota de solidariedade dirigida aos meus colegas da redacção – oxalá corra tudo pelo melhor; ou seja: o que quer que aconteça, não percam a pica de querer vingar nisto do jornalismo).
3) À comunidade política, jornalística e de comentadores que teima em funcionar por ódios - e que resume a análise política à avaliação do carácter alheio. Foram vocês que me ajudaram a explorar um generoso nicho de mercado. Se virmos bem, o mundo não se divide só em monstros e santidades.
4) Às generosas colunas de citações que me citaram (segundo a dona Idalina, só me faltou o Destak e a Spectator). Foi bom – sobretudo para a família. E às colunas de citações em que, pura e simplesmente, deixei de ser citado (sobretudo o DN, que repetiu três vezes as minhas palavrinhas na primeira semana de actividade e que me cortou, de um momento para o outro, da lista; devo ter sido inconveniente para a dona da casa ou coisa do género). A estas últimas, faço questão de notar: meus caros, eu não tenho importância suficiente para deixar de ser citado.
5) E, por fim, à minha vizinha de baixo. Obrigado por tudo. Pela sua paranóia constante. Pelo seu canídeo fedorento. Por não querer pagar as contas do condomínio. Por, apesar de tudo isso, exigir que nós a tratemos como uma vizinha de cima (tipo Daniela Cicarelli). Sem a sua colaboração, este pesadelo diário não teria sido possível.

Monday, July 18, 2005

Curso intensivo sobre a natureza humana

Começamos a perceber isso: o atentado em Londres foi, além do mais, um tratado sobre a natureza humana. As reportagens têm informado sobre alguns pormenores biográficos dos terroristas. Sim, atrás dos autores da matança havia vidas comuns. Estou a ser pouco rigoroso: pelo menos num dos casos, havia uma vida incomum – de generosidade e atenção aos outros, por exemplo.
Havia, há a história de um homem que, profissionalmente, ajudava outros homens com dificuldades de integração e aprendizagem. E que, numa manhã de Julho, não hesitou em estilhaçar o coração de uma série de homens que nunca vira antes. Provavelmente – as imagens de vídeo que antecedem o ataque sugerem essa possibilidade – com um rosto sereno, apaziguado. Feliz.
Ontem, numa sessão da meia-noite, assisti a outro tratado sobre essa coisa de ser pessoa. Colisão, do canadiano Paul Haggis, é um filme poderosíssimo pela maneira como revela as contradições do ser humano – para além de todos os desejos moralizadores. O que impressiona no filme não é a estratégia narrativa (feita de cruzamentos vários, à maneira - um bocadinho batida, convenhamos - de Magnolia), mas sim a complexa e surpreendente abordagem que faz de um tema tão facilmente capturável pelas redes do politicamente correcto: o racismo.
Em Colisão, há «maus» que são capazes de praticar o bem. E «bons» que são capazes dos actos mais hediondos. Há racismo entre imigrantes. Há racistas que são capazes de grandes gestos. E há anti-racistas que na primeira discussão no trânsito gritam palavras xenófobas. Pois, exactamente como na vida de todos os dias. Por mais que nos queiram, aqui e ali, vender o contrário. Na sociologia, na arte ou nos discursos de quem ainda insiste em dividir a humanidade em santos e monstros.