Monday, May 30, 2005

«As verdades» de Medina Carreira

Antes de mais, aquilo que é importante nisto tudo: Medina Carreira é um economista com piada. Com muita piada mesmo. Um frasista. Com talento, rasgo e provocação. O que menos interessa: Medina Carreira diz coisas importantes para o país. Medina Carreira diz aquilo que os portugueses comuns (e até quem sabe a Maria Gabriela Llansol) designam por «verdades».
A última entrevista que deu (à SIC-Notícias) foi um momento televisivo marcante para muito boa gente. Pelo menos a julgar pelas conversetas de café e de salão. Ou seja: quem viu não tocou noutro assunto. Cada um lançou a sua sentença: o homem cortou a direito; o homem afirmou o que os políticos não têm coragem para nos revelar; o homem é que é.
O que nos pode levar a pensar que os portugueses estão prontos para seguir a via difícil e onerosa por si defendida. Aquela que vocifera que não há outro caminho para a sobrevivência do país senão a de conter as despesas do Estado – o que implicará, necessariamente, despedimentos e uma vigilância maior à cultura do subsídio.
Pois, nada mais ilusório. A óbvia conclusão a que chegou o quarto andar sem elevador é esta: os portugueses apreciam um homem que seja frontal (e mesmo brutal) na identificação das causas da decadência da Nação, mas não aguentam o embate da prática e do dia-a-dia. Não têm a genica suficiente para sacudir hábitos de laxismo. Sejamos pouco líricos nisto: a verdade é que ninguém está preparado para corresponder às expectativas de exigência de um Medina Carreira. Por mais que gostemos de o ouvir dizer «as verdades» na televisão.
(publicado no dia 29 de Maio de 2005)

Friday, May 27, 2005

Cavaco para comissário de qualquer coisa

Não, não sei se já perceberam. Há um sentimento de alívio nas ruas, nas tascas, nas lojas do cidadão, nas paragens de autocarro, nas plantações de sobreiros. Os portugueses arranjaram maneira de se verem livres de políticos que já deviam ter metido a papelada para reforma. Eis a novíssima forma de nos safarmos de personagens que ameaçam voltar à política nacional: mandá-las para cargos internacionais. Aconteceu com Guterres. Proponho, já agora, que se mande também Cavaco.
Sou o primeiro a assinar a petição. A meter a cunha. Até sou rapaz para mandar um SMS ao Kofi Annan (só não sei se ele ainda tem o mesmo número). Cavaco para alto-comissário de qualquer coisa. Cavaco para alto-comissário da ONU para a Tecnocracia e o Deixem-me Trabalhar. Cavaco para alto-comissário da ONU para o Tabu e o Bolo-Rei. Seria igualmente prestigiante e pouparia a lusitana pátria ao cavaquismo versão presidencial. O que é que me dizem?
Enquanto não dizem nada, vou avançando: não nos fiquemos por aqui. Por que é que não arranjamos cargos internacionais para personalidades de outras áreas - que estão, digamos, a precisar de um arejozinho? Por exemplo, pelo que vejo e ouço, há demasiados sportinguistas a quererem mandar Peseiro para o estrangeiro - ou para um sítio que eles lá sabem. Fica a proposta: mande-se o senhor para um cargo da UEFA na Albânia ou na Arménia.
Os católicos menos conservadores, esses, gostariam certamente de poder mandar Ratzinger para bem longe. Assim de repente, ocorre-me uma hipótese: o cargo de alto-comissário para o Mundo Católico. Em Marte, pois.

(texto publicado no dia 27 de Maio de 2005)

Sócrates é amigo

Logo a seguir à queda de Santana Lopes, O Indesejado, comentei com a dona Isaura e o seu neto Márcio - e depois registei a ideia na croniqueta do dia - que o populismo não tinha terminado. Que, mais cedo ou mais tarde, o novo primeiro-ministro iria revelar a careca da demagogia. Era, convenhamos, uma jogada bastante arriscada. O personagem ainda não tinha revelado uma pontinha de humanidade que fosse.
Sócrates é mais humano do que se imaginava - e é inegavelmente amigo do quarto andar sem elevador (obrigados). Mais: Sócrates é um político. Um político clássico. Ou melhor - típico. Não é o ser robótico que aparentava ser. Também faz promessas para agradar ao povo que o vai eleger. Também diz que não vai aumentar os impostos e depois, no primeiro momento de aperto, quer fazer esquecer o que afirmou. Sócrates, afinal, tem alguma coisa de Santana.
Acontece com qualquer pop star – e o nosso actual primeiro é, inegavelmente, uma. Tal como Pedro, José já começa a desiludir os seus fãs – com todo o exagero que as relações entre fãs e ídolos comportam. E aqueles que nele depositaram alguma fezada começam a baixar a cabeça. O pai de um amigo meu chamou o filho a um canto para um desabafo. Contou-lhe que tinha votado em José Sócrates na convicção de que ele não iria subir os impostos. E que, por isso, se sente neste momento enganado. Defraudado. Zangado. O meu amigo não lhe perguntou, mas é bem possível que o seu sentido de voto, hoje, não fosse o mesmo. Sim, nestes dias em que o socratismo começa a revelar algumas das suas sombras, os papéis invertem-se nas casas dos portugueses. São os filhos que não sabem o que é que hão-de dizer aos pais.

(texto publicado no dia 26 de Maio)

Wednesday, May 25, 2005

Notícia do meu prédio

Sei disso: aqueles que me lêem estão sempre à espera que traga novidades sobre a minha vizinha de baixo. Não adianta fingir que não é assim. Vós, os meus leitores (ah, que expressão onanista - se não me dirigisse, é claro, a duas pessoas) são capazes de passar sem o meu magno pensamento sobre o défice, o Bloco, os fatos do Portas, o campeonato de futebol, o referendo à constituição europeia ou o último poema do Ramos Rosa (escrito há 12 segundos, parece-me). O que não dispensam é a noticiazinha sobre a minha vizinha de baixo. E eu, escriba servil, faço-vos a vontade.
A notícia da jornada sobre a minha vizinha de baixo é aterradora. Esqueçam problemas tipo inundações em barda, ausência prolongadíssima de pagamento de condomínio ou bombeiros a entrarem-nos por casa dentro sem qualquer razão. Pior do que tudo isso: a minha vizinha de baixo está numa de ser simpática para a família do quarto andar sem elevador - abre-nos, como um porteiro à antiga, a porta aqui do prédio e até faz questão de nos avisar que caiu do fio da roupa um atoalhado nosso. Não, não sei se vou aguentar mais isso. Não admito tamanha generosidade da vizinhança.
Uma vizinha de baixo é uma vizinha de baixo. Terá de continuar a ser uma vizinha de baixo. Com quem temos conflitos permanentes. Com quem cortamos relações todos os dias. E, além do mais, tenho de cultivar – o mais obsessivamente possível – as temáticas recorrentes da croniqueta. É que, da maneira que isto está, daqui a nada começamos a passar os serões a discutir, sei lá, a influência de Ricardo Reis em Fernando Pessoa. Com o canídeo fedorento da senhora ao lado.
(publicado no dia 25 de Maio)

Sunday, May 22, 2005

A morte do colunista

Estou desiludido. Ainda não encontrei ninguém a escrever sobre a doença da Kylie Minogue. Todos os dias folheio a jornalada à procura do texto – e nada. Não, ainda não li nenhuma prosa metafórica sobre a fragilidade daqueles que julgamos imunes às enfermidades e ao sofrimento comuns. Sobre o facto de se provar mais uma vez que até os deuses podem ser obrigados a fazer quimioterapia. E, confesso, tinha fortes expectativas que isso viesse a acontecer.
Admito: esperava percorrer, um a um, os parágrafos de uma crónica intitulada “Musas com Pés de Barro” (talvez apareça no fim-de-semana, na revista do Expresso). Como esperei a confraria de artigos moralistas sobre o caso dos sobreiros e de Nobre Guedes (aí fui afortunado). Como esperei artigalhadas várias sobre Valentim Loureiro e Isaltino (também tive sorte – comigo mesmo, inclusive). Como esperei o embalo das linhas moles sobre o tsunami, os polícias mortos e o episódio da Terry Schiavo.
Sim, devia constar dos manuais. Esse é um dos perigos primeiros da actividade de colunista e de cronista: ser levado na enxurrada da facilidade e da previsibilidade. Às vezes, como se costuma dizer, não se faz por mal. É-se seduzido ou pela poesia fácil ou pelo pleonasmo da indignação. Costuma chamar-se abutres a certo tipo de jornalistas. Os colunistas, a serem um animal, são, em geral, uma pobre ovelha. Sempre pronta a seguir em rebanho o assunto do dia. De forma melancolicamente previsível.
E, sabemo-lo, não há nada pior para um opinante profissional do que o leitor conseguir prever tudo o que vai escrevinhar sobre determinado assunto. É a chamada morte do colunista.
(texto publicado no dia 20 de Maio de 2005)

Lusitana chinatown

A história da inspecção às lojas chinesas fez-me lembrar uma longa conversa promovida por este jornal entre Pacheco Pereira e Eduardo Lourenço. Recordo-me de Pacheco ter comentado, entre outras coisas, que muitos comerciantes portugueses ainda não perceberam o tempo em que vivem. Lamentam-se demasiado e pouco fazem para se modernizarem e se tornarem competitivos.
Já lá estivemos. Agora são eles que cá estão. Sim, Portugal já foi conhecido pelos seus périplos ao Oriente. Agora é conhecido pelo país que quer expulsar - ou, pelo menos, amedrontar - os orientais que lhe vieram prejudicar o negócio. Abram o ouvido: há um cochicho invejoso e mesquinho a rastejar pelas ruelas, tascas e lojas de conveniência: «Olha que os gajos trabalham de mais e têm bugigangas baratas. É preciso ter cuidado com os chinos».
Sabe o que é que dá vontade, dona Genoveva? (Desculpem. É que a senhora apareceu agora aqui em casa para fazer a análise da jogatana de ontem, com o seu poético vocabulário à Rui Santos). Dá vontade de imaginar uma inspecção aos comerciantes portugueses. Uma inspecção daquelas que dão para assustar até um Tarzan Taborda. Uma investida que revele aquilo que já adivinhamos: que seria preciso ter a casa bem limpinha para levantar ondas aos outros.
Mais: dá vontade de imaginar Portugal transformado numa imensa Chinatown. Do mais pirososo – mas eficaz - que pode existir. E com os pequenos comerciantes lusos a serem obrigados a modernizarem as suas lojecas - e a melhorarem o serviço, a qualidade e o preço dos seus produtos. Como já deviam ter feito, aliás.
(texto publicado no dia 19 de Maio de 2005)

Wednesday, May 18, 2005

O debate homossexual

Há uns meses, depois de ter participado num debate sobre a adopção de crianças por homossexuais (calma, dona Arlinda, eu depois conto por que é que participei nesse debate), perguntei a um amigo homossexual (está nos cinquentas e é um ex-militante das chamadas “causas gay”) se ele era ou não a favor dessa possibilidade. Confesso que não estava à espera da resposta: «Sou contra isso. Nós somos diferentes. E casos diferentes devem ser tratados de forma diferente». (Não, dona Arlinda, o homossexual em questão não é o Zé Carlos da farmácia).
O meu amigo ainda acrescentou: «Grande parte dos homossexuais tem uma existência virada para o social, para o exterior, e isso não se coaduna com a vida caseira e recatada que uma responsabilidade dessas impõe». Por que é que o trago à croniqueta de hoje? Porque se tem falado destes temas. Porque houve esta semana, em Viseu, uma manif contra a discriminação e a violência. Porque achei interessante e surpreendente a opinião dele. E sobretudo porque acho que no debate sobre os “direitos dos homossexuais” não se devia excluir aqueles que, fazendo parte da “comunidade”, têm opiniões como esta. (Não, também não é esse, dona Arlinda, também não é o Alfredo do restaurante).
Em relação à manifestação, quero aqui deixar registado que, embora não me sinta, por uma questão feitio, um fervoroso adepto de marchas, sou a favor. Totalmente. Sim, sei que manifestações como esta têm o seu efeito. E tudo o que seja pressionar e encurralar hooligans sociais terá o meu apoio.
(Não, dona Arlinda, não é o seu marido. Eu depois conto-lhe quem é).

(publicado no dia 18 de Maio)

Chatear o Kumba Ialá

Descansem que eles estão quase aí. Já descongelaram o discurso do costume e a qualquer momento vão subir às tribunas. Esperem pelo final do campeonato e pela festança. Já estou a ouvi-los a retreinar as frases com a filharada: «Repitam comigo. Este país é sempre a mesma coisa. Só se interessa pelo futebol. Estas pessoas que estão aos pulos nas ruas deviam era começar a tratar dos seus problemas». «Dos seus verdadeiros problemas», acrescentam.
Eu também já estou a ensaiar com o meu filho a resposta a esses tipos. Resume-se a um: «E se fossem chatear o Kumba Ialá?» (sim, qualquer coisa que o rapaz - que está quase nos nove meses - diga parece-se com Kumba Ialá). Confesso que em matéria de sentimentos em relação aos que vão saltar e apitar para as ruas depois das vitórias dos seus clubes moro no lado oposto. Tenho inveja, aquele sentimento tão português, que deu origem ao livrinho do professor Gil.
Em termos futebolísticos, tenho andado uma galdéria. Já cheguei a assistir no Restelo a um jogo entre o Belenenses (o clube do meu avô) e o Santa Clara (o clube da minha terra) em que festejei os golos de ambas equipas. Estou mole. Melancólico. Democrático - no fundo, tudo aquilo que nunca se pode ser em matéria de bola. Tem-me faltado a pica para vibrar (e que vi, invejoso, no amigo em casa de quem assisti ao Benfica-Sporting).
É uma decisão. No Boavista-Benfica, quero voltar a ser aquele puto que chorava quando o Bento levava golos entre as pernas do Liverpool. Ou seja: no sábado, quero estar mais clubista. Mais faccioso. Isso: mais parvo.
(publicado no dia 17 de Maio)

Tuesday, May 17, 2005

Nobre Guedes e o Benfica

Deixem-me fazer uma pergunta para começar: o que é que une os ministros do último Governo que assinaram um polémico despacho e o Sport Lisboa e Benfica? Ambos resolveram tratar das coisas à última da hora. Ambos honraram a tradição do «deixa para amanhã o que podes fazer hoje». Ou seja: ambos são genuinamente tugas. Mereceriam, pois, fazer parte de uma novíssima versão da Arte de ser Português, de Pascoaes.
«Esses nunca me enganaram. O problema é o outro, o Zé Sócrates, que até parecia estrangeiro», comentou comigo, à entrada do extra, a dona Maria Júlia. Está bem visto. Dona Maria Júlia rules. Dona Maria Júlia para comentadora da SIC-Notícias, já. Ao contrário do que as aparências e o estilo sofisticado poderiam sugerir, o primeiro-ministro José Sócrates também é bastante lusitano nisso. Aquele ar estrangeirado, de quem anda a comprar instalações do Cabrita Reis em feiras de arte na Alemanha, afinal, é só para enganar. Só para português ver, melhor dizendo.
Comecei por dar o benefício da dúvida, mas agora treino um novo raciocínio. A julgar pela fraca produtividade do Executivo socialista, é de crer que José Sócrates está a guardar-se para os últimos dias de governação. Aliás, só pode ser isso: tal como o Benfica, o primeiro-ministro quer ganhar o campeonato na última jornada. Durante quase quatro anos vai andar a lançar ideias-chave - a provar que o diabólico marketing não era um exclusivo do Governo de Santana - e, no final, fará uma data de reformas estruturais. Com ou sem ajuda dos árbitros.

(texto publicado no dia 16 de Maio)

Friday, May 13, 2005

O medo de engordar

Li já não sei onde que está prestes a ir para o ar um reality-show com gordos. Diz que o objectivo do concurso é fazer uma dietazinha em frente às câmaras. É isso: não percebo por que é que ainda não chegou o convite. Para apresentador, claro. Ou então para bailarina figurante.
Mas esta crónica não é sobre televisão. É sobre a vida para além dos estúdios. (Há uma, apesar de tudo). É sobre cafés, os cafés portugueses, e sobre aqueles que considero dos maiores responsáveis pela obesidade nacional: os empregados de café.
Os cronistas andam a fugir deste tema como os realizadores lusos fogem do Dubai. Como os políticos fogem do Sá Fernandes. Como o Telmo Correia foge da calamidade que está a atravessar há uns tempos. Os colunistas preferem escrever sobre o Sócrates, sobre o défice, sobre o Nobre Guedes, sobre o Benfica-Sporting. Enfim, sobre matérias que não interessam nem ao César das Neves.
Já altura de alguém pegar neste magno assunto. Chegou o momento de confrontar os empregados de café com a pergunta: por que é que, quando nós pedimos um café com adoçante, o café vem sempre acompanhado de açúcar? Pois é, disso ninguém fala. E este é um dos mais perfurantes problemas da Nação. Qual Medo de Existir, qual quê. Por estes dias, José Gil já deveria estar a escrever o «Portugal, Hoje – o Medo de Engordar». Um volume dedicado aos empregados de café que se esquecem sempre de trazer o adoçante para a mesa. Porque, se porventura, um dias destes, eles se lembrarem de trazer o pacotinho certo, poderão alterar decisivamente o futuro do país. É só quererem. Garanto.
(publicado no dia 13 de Maio)

As regras

Não sei se Isaltino Morais e Valentim Loureiro vão ser ou não expulsos do PSD, mas agrada-me a ideia de viver numa sociedade em que as regras básicas das organizações funcionam. Em que não vale tudo. Em que fazer parte de um clube significa respeitar os seus princípios essenciais. Em que os meninos, quando se portam mal, são obrigados a ir lá para fora. Mais: são obrigados a ir lá para fora assistir ao programa do Goucha.
Hoje em dia, fica bem ser contra as regras. Questioná-las a cada instante. Os adultos são adolescentes e os adolescentes crianças. Ou por outra: são raríssimos aqueles que assumem as suas responsabilidades. Que dizem: «Não me portei bem. Assumo o que fiz e acho que devo pagar por isso. Sim, aceito que me mandem para a Nova Democracia durante cinco anos». Agora, um tipo porta-se mal e a primeira coisa que faz é telefonar para uma televisão e dizer que há gente desumana que o quer expulsar de casa. Estamos nisto.
Há uma evidentíssima pressão nos jornais, nas rádios, nas televisões, para que as regras não se cumpram. Muitas e muitas vezes, quem manda cumprir uma regra (a do dever de lealdade a um partido, por exemplo) é logo visto nos media como um «fascistóide». Como alguém que não sabe o «verdadeiro significado do 25 de Abril». Veja-se o caso de Freitas. Freitas do Amaral foi suspenso do Partido Popular Europeu ao assumir funções num Governo socialista e a maior parte dos comentadores achou que a suspensão era «absolutamente inaceitável». O que, se pensarmos um pouco, é uma opinião de quem perdeu o Norte e o sentido da decência.
Invoca-se gratuitamente a democracia para criticar os «fascistóides» quando a verdade é que uma democracia não funciona sem regras. Mas ainda estamos demasiado complexados para perceber a evidência.
(publicado no dia 12 de Maio)

Wednesday, May 11, 2005

Aguentem o homem

Cuidado, portugueses: um dia destes, José Sá Fernandes embarga a nossa vida sexual. Acorda com o argumento de que a nossa vida sexual tem efeitos nocivos fortíssimos para a saúde pública e nós não temos outro remédio se não abster-nos durante uns meses (talvez uns anos ou mesmo décadas) de qualquer gesto sequer erótico. O que pode ser uma chatice.
Teremos de parar. Teremos de ficar quietinhos. A jogar king, sueca e burro em pé. Ou a assistir às emissões do People & Arts. Do Canal História. Da TV Galicia. Da TV-Saúde. Do Panda. Do Viver. Até que um juiz terno e bondoso decida que, afinal, o sexo não é assim tão, tão prejudicial - e que até pode ajudar a distender algumas almas, digamos, mais tensas e reprimidas.
Sim, tal como Pedro Santana Lopes, José Sá Fernandes anda por aí. A tratar das nossas vidas. A cuidar de nós. A zelar pelos nossos interesses e negócios. A recolher a nossa papelada dispersa. A salvar-nos dos maus e poderosos. José Sá Fernandes é o super-herói Marvel do nosso tempo. Pronto para salvar o cidadão desprevenido das garras desse monstro esverdeado e poluente que ora se chama Câmara Municipal ora se chama Governo.
No momento, segundo parece, está mais sedento de justiça do que nunca. Ele quer parar tudo. Contra todos. Já abandonou o Departamento dos Tunéis e agora virou a sua pulsão embargadora para a cultura do milho trangénico.
Em nome do quarto andar sem elevador, agradeço a sua preocupação. Mas, ao mesmo tempo, faço um pedido dos mais simples: quem puder, agarre o senhor. Um dia que seja. Em nome do nosso direito ao descanso.
(publicado no dia 11 de Maio)

Mainardi

Um homem não se mete aos palmos, mas, muitas vezes, um colunista mede-se aos ódios. O brasileiro Diogo Mainardi é um desses casos. Quanto mais ódios consegue gerar, mais se impõe como colunista. Conhecido sobretudo pela participação no programa Manhattan Connection, Mainardi entra na categoria de comentador ultra-ultra-irritante. É ele próprio que escreve: por cada dez cartas que recebe, nove são insultos.
Diogo Mainardi é uma espécie de Vasco Pulido Valente com pinta e sentido de humor. Embora não seja tão talentoso, descende de uma linhagem de colunistas brasileiros que não hesitavam em fazer uso de uma sátira violenta para encrespar as personagens visadas nos seus artigos – e, é claro, os amáveis leitores. Refiro-me, por exemplo, a Nelson Rodrigues e a Paulo Francis.
Nos últimos tempos, andei a ler A Tapas e Pontapés, compilação dos seus melhores textos na Veja. As crónicas têm temas muito variados. Numas, Mainardi debruça-se sobre Lula da Silva. Noutras, escreve sobre Lula da Silva. E ainda noutras malha em Lula da Silva.
Aqui, ali e acolá, faz igualmente um retrato devastador do Brasil e, heresia das heresias, critica com regularidade Caetano Veloso - que, por sua vez, diz que Mainardi é um «abacaxi com caroço». É o que chama levar com uma Caetanada nas trombas.
Curiosamente, Diogo já não escreve sobre Lula na Veja. Despediu-se, há umas semanas, do seu ódio de estimação. Mas, felizmente, continua em forma. No outro dia, fazia uma comparação entre as letras das música de Xuxa e as letras das músicas de Caetano. E quis provar com alguns exemplos que as letras de Xuxa são melhores do que as de Caetano.
Faz falta gente assim. Gente chata assim. Acima de tudo, o rapaz é do contra. É isso que mais o define - embora pelo meio vá, como se costuma dizer, dizendo umas verdades. Segue, pois, sobretudo aquela frase do Millôr Fernandes (que encontrei há tempos no blogue Contra a Corrente): «Li, ontem, um editorial magnífico. Não dizia absolutamente nada, mas era do contra».

(publicado no dia 10 de Maio)

Reaccionário

Há quem compre um livro por causa do autor. Há quem compre um livro por causa da badana. Há quem compre um livro por causa da cinta. Há quem compre um livro porque esse livro foi referido no programa Os SPAS’s da Marisa. Eu comprei Resistir, de Ernesto Sabato, porque tem um capítulo intitulado Os Antigos Valores.
Não traz nada de novo (apesar do título fortemente enganador) ou de excepcional, mas é reconfortante. É como uma conversa com um avô. Com um amigo (um comunista de 70 e muitos anos) que me costuma contar de um tempo em que, como se costumava dizer, as pessoas tinham palavra.
Deste capítulo de Resistir ficam-me frases simples e sem pretensões como esta: «A vida dos homens centrava-se em valores espirituais, hoje quase em desuso, como a dignidade, o desinteresse, o estoicismo do ser humano face à adversidade. Estes grandes valores, como a honestidade, a honra, o gosto pelas coisas bem feitas, o respeito pelos outros, não eram nada de excepcional, tinham-nos a maioria das pessoas. Donde viria o seu valor, a sua coragem perante a vida?». Ou como esta: «Negar a morte, não ir aos cemitérios, não usar luto, tudo isso pareceu uma afirmação de vida e foi-o, em certa medida. Mas, paradoxalmente, converteu-se num engano, um entre tantos fabricados pela sociedade actual para que o homem não chegue a perceber as situações limite, aquelas em que o nosso mundo se esvazia, as únicas que nos podem sacudir desta inércia em que avançamos».
Decidi agora mesmo: este capítulo basta-me. Não vou ler mais nada do livro. Afinal de contas, um homem tem defender a sua reputação de reaccionário.

(publicado no dia 9 de Maio de 2005)

Saturday, May 07, 2005

O trânsito em Akureyri

Os efeitos da globalização podem tornar-se patéticos. Por estes dias, enquanto passeava de manhã pelas ruelas e becos da cidade, encontrei pares de pais a trocarem ideias sobre os mais obscuros pormenores das eleições em Inglaterra - enquanto os filhos puxavam pelas suas camisas, ansiosos por poderem chegar a tempo às aulas. Havia professores a querer regressar ao castigo das reguadas. Nos progenitores, naturalmente.
Até a minha vizinha de baixo, que nem a Mulher Moderna lê, passou a comprar a Economist para ter opinião sobre todas as alíneas dos programas de Blair, Howard e Kennedy. Corrijo: até o canídeo da senhora passou noites e noites a fazer minuciosas comparações entre as últimas sondagens. Mais: até as pulgas do fedorento participaram hoje de manhã no fórum pós-eleitoral da BBC.
Isto está a atingir dimensões fabulosas. Daqui a nada, o caso tornar-se-á psiquiátrico. O que até pode animar o país, nesta era de socratismo sonâmbulo. Antecipemos os acontecimentos. As eleições para a junta da zona oeste de uma cidade obscura do Burundi serão acompanhadas nas tascas de Alfama como se fossem marchas de Lisboa. O problema da canalização numa casa em Bogotá será tema de conversa nos jantares de família em Alfornelos. Em vez do trânsito nas cidades portuguesas, teremos, logo pela matina, na Antena 1 e na TSF, o trânsito de Bordéus, Bombaim e Akureyri.
Eu, se me dão licença, deixo aqui registado que tenho um problema de térmitas para resolver. E, por incrível que pareça, não há nenhum jornal do mundo que faça manchete com isso. Tá mal. Tá muito mal.

Thursday, May 05, 2005

A Margarida é fixe

Desde o momento da publicação da entrevista que fiz à Margarida Rebelo Pinto (o último sábado; vós, os meus dois dedicados leitores, sabeis disso) que não tenho tido descanso. Primeiro foi uma amiga que me desancou ao telefone. Depois foi um amigo que me desancou antes de um jogo de bola. Por fim, foi a vizinhança inteira que me desancou no café - ainda não tinha pedido a sandes mista e o galão com adoçante. Sim, a Brigada Anti-Rebelo Pinto entrou em acção.
Meus queridos, a Margarida é fixe. (Se algum jornal me quiser citar, que leve esta frase). Não se irritem tanto com ela. Vá, dêem quatro voltas ao quarteirão. Se não bastar, leiam três livros do Ramos Rosa e a prosa do Destak. Se, mesmo assim, continuarem irritadiços, imaginem que foram convidados para a tertúlia do SIC-10 Horas e que podem provocar estragos à vontade.
Não, não percebo de onde vem essa urticária toda em relação à Margarida Rebelo Pinto. A sério que não percebo. Eu cá continuo na minha: só num país culturalmente inseguro, o fenómeno Rebelo Pinto pode ser incómodo. O Cavaco é que tinha razão: deixem-na trabalhar. Está claro dentro da minha melancólica cabecinha: quanto mais os Ratzingers do pensamento nacional lançarem o seu ar de desprezo sobre ela, mais eu vou defendê-la. Ai vou, vou.
Porque ela é o que é: uma mulher que resolveu escrever livros - e que ganha bastante dinheiro com isso. Mais importante: uma escritora que tem feito por melhorar a qualidade da sua escrita e que vai editar um livro atravessado de uma raiva sarcástica, a fazer lembrar os melhores momentos da espanhola Lucía Etxebarria. Pergunto: algum problema com isso?

(texto publicado no dia 5 de Maio)

Wednesday, May 04, 2005

Neocrónica

É engraçado. Engraçadíssimo mesmo. Fala-se muito em neoconservadorismo e em neoliberalismo, mas ninguém ouve falar em neoprogressismo ou em neoestatismo. «Neo» está sempre associado às coisas ditas de direita. Em tom duro. Maldisposto. Amargoso. Por aqui, chamar alguém de «neoconservador» é como atirar-lhe com uma pedra da calçada à marrafa. É como ir no trânsito e abrir a janela para gritar: «Sai lá daí, ó Américo Thomaz do Saldanha Residence!».
Mais: há, segundo 632,2 escribas, uma «nova direita» («os gajos da nova direita» para aqui; «os gajos da nova direita» para ali). Mas ninguém fala numa nova esquerda (a não ser, julgo, Pulido Valente no último fim-de-semana). O que não é lá muito – chamemos-lhe assim - justo. Correcto. Sério. Pois: se é verdade que há um conjunto de novos personagens pensantes à direita, também o é que há um conjunto à esquerda. Podem ser encontradas no bar Agito, ao Bairro Alto.
Até o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – ou melhor o neodicionário da Academia das Ciências de Lisboa – é demasiado canhoto nas escolhas. Sim, deve ter sido revisto por Mário Soares, Miguel Vale de Almeida e um conjunto de estagiários com t-shirts do Che. Há lá no meio apenas uma definição de neoliberalismo - e nadinha do resto.
Pergunto, daqui do neoquarto andar sem elevador (onde habitam algumas neotérmitas): para quando a definição do neolouçãnismo (que já está a surgir em força nas C+S do país)? Para quando o significado de neoantiamericanismo? E de neocaviarismo? Exijo uma resposta. O neoemail está à vossa disposição. Neodisposição, desculpem.
(texto publicado no dia 4 de Maio)

Da impureza do futebol

Não subscrevo o que diz o Arménio da drogaria: «O Sporting pode ter o Liedson e o Pinilla mas o Benfica tem o Mário Mendes». Mas, tal com muitos outros benfiquistas, não fico propriamente eufórico ao perceber – ainda por cima, lá no estádio - que o meu clube ganhou a jogatana com o Belenenses por causa de um penalti oferecido pela arbitragem. Isso: algures no meio da bancada, houve alguém que não se pôs a saltar como o senhor João Baião.
Não fico feliz da vida, mas também não alinho nesta nova onda de benfiquismo culpado - ou nas análises embebidas no antibenfiquismo do costume. Ou seja: não vou deixar de fazer sapateado pelas ruas da capital se o Benfica ganhar este ano o campeonato. (Sim, hoje a croniqueta é patrocinada pela palavra não). Mas porquê, ó Santos?, pergunta o Nando da loja de ferragens. Porque, convenhamos, não é a primeira vez na História do Futebol que um clube é levado ao colo (para citar Santana) pelos árbitros. O que nem é o caso.
É que, a julgar pelo que se anda a rabiscar nas paredes do país, parece que isto do favorecimento às claras nunca aconteceu. Parece que até agora os árbitros foram virgens sérias e imparciais e que, a partir de sábado, passaram à categoria de comprados. O «Portugal espantado» em todo o seu esplendor.
Não, não digo como o Arménio: «Até o árbitro tem um nome a defender: o de gatuno». Nem quero apanhar boleia de um discurso melancólico e fatalista. Mas, se formos avaliar os campeonatos por juízos sobre os árbitros e as arbitragens, vamos encontrar demasiadas vezes a palavra injustiça. E, se me permitem, não me apetece ir por aí.
(texto publicado no dia 3 de Maio)

Tuesday, May 03, 2005

Hitler era um homem

Não, ainda não assisti ao filme A Queda - Hitler e o Fim do III Reich. Mas já li bastante sobre a película. E, ontem, segui o sereno e esclarecedor comentário do Alexandre Borges aqui na Capital sobre o dito. Ou seja: ainda não vi o filme, mas já fiz o filme do filme.
Mas o meu ponto nada tem a ver com cinema (como tinha o ponto do Alexandre, certeiramente crítico em relação aos juízos morais sobre a fita). Tem a ver com os comentários que têm circulado por estes dias sobre Adolf Hitler.
Ouço e leio que Hitler não era um homem. Que não era um ser humano. Ouço e leio que Hitler era um monstro. Ora, permitam-me discordar (um verbo especialmente apetecível para as segundas-feiras). Hitler era humano. Demasiado humano até. Porque só o humano pode conter tanta monstruosidade dentro de si.
Prefiro ver as coisas desta forma: Hitler não era um monstro. Era um homem monstruoso. O que é muito diferente. Porque, ao considerá-lo um ser humano monstruoso, não estamos a afastá-lo. Não estamos a chutá-lo para «outro mundo». Não estamos a dizer: «A maldade de Hitler não tem nada a ver com connosco». O facto é que tem. E muito. Quando Freitas comparou Bush a Hitler estava a comparar dois seres humanos.
A verdade é que Hitler era tão humano que, como mostra o filme e lembra o Alexandre, tem alguns instantes de luminosidade na sua biografia. Ou seja: é, como todos nós, um ser complexo. Com um extensíssimo território obscuro e maligno espalhado pelo espírito.
Para grande parte da opinião pública portuguesa (ah, como detesto esta expressão), o monstro do momento chama-se Carlos Silvino. E, aos olhos dos que vão estrebuchar para a frente do tribunal, Bibi é uma «besta». Um «animal». Esquecem-se de um pormenor: que a condição de réu está reservada aos homens. E que eles próprios, a julgar pela epilépsia de ódio e crueldade, não são flor que se cheire.